sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Vencer o preconceito



Mafoane Odara: “Como garantir que haja mulheres negras nos cursos de engenharia?”



04/10/2016 - 12:20 -
Segundo a coordenadora do Instituto Avon, a autonomia das vítimas também depende de que as mulheres assumam posições-chave no mercado de trabalho




Há cerca de 15 anos, a psicóloga e ativista Mafoane Odara se dedica a frentes de luta simultâneas, contra a discriminação racial e de gênero. Faz isso, tradicionalmente, buscando apoio e integração de esforços entre ONGs e empresas. Em dezembro de 2015, ela assumiu a coordenadoria de projetos do Instituto Avon e, também, a campanha Fale Sem Medo – Não à Violência Doméstica, em atividade desde 2008.

Numa segunda-feira do fim de setembro, a psicóloga dividiu a palavra em debate com Ludy Green, americana fundadora da ONG Second Chance Employment Services (Serviços de Emprego Segunda Chance), Carmen Ferreira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, e Teresa Cristina Cabral, juíza e representante da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mafoane tratou de como garantir segurança e independência econômica às vítimas de violência doméstica. Ela conversou a respeito com ÉPOCA.

 Mafoane Odara, ativista contra discriminação de gênero e raça. “A violência contra a mulher é um problema de todos. Os homens também precisam comprar essa briga” (Foto: reprodução)

ÉPOCA – Ao fazer a reinserção de mulheres no mercado de trabalho, é normal que se fale em cursos de gastronomia, beleza, corte e costura. Isso não faz as mulheres concorrerem entre si em poucos nichos? Não reforça estereótipos?

Mafoane Odara – Exatamente. Quais são as alternativas que estamos oferecendo? As mulheres em situação de violência ganham 50% menos do que as outras mulheres, que já ganham menos do que os homens. E as mulheres negras ganham menos do que as mulheres brancas. É preocupante. Ninguém pergunta para a mulher o que ela quer. Muitos desses cursos muitas vezes são oferecidos sem que seja aquilo que as mulheres gostariam de fazer. Há uma dificuldade por conta da visão de que existem lugares de mulheres e lugares de homens. Nos lugares onde as mulheres poderiam ganhar mais e se destacar, elas não são consideradas. É preciso fazer uma discussão transversal, parar de se acomodar com menos e fazer as transformações que realmente precisam ser feitas. E não são as grandes transformações – precisamos olhar para as pequenas.

Por exemplo, como garanto que mulheres negras estejam nas carreiras de engenharia? Como garanto que mulheres façam parte da política institucional? Essas são discussões importantes. Quem faz as leis deste país? Quem constrói essas políticas? As mulheres não estão lá. Quando não estão, esse olhar é masculino. Isso tem de ser levado em consideração. Pensar sobre a autonomia econômica é repensar como esse sistema funciona e como fazemos para colocá-las em lugares-chave, onde a transformação tenha potencial de ganhar escala.

ÉPOCA – No Brasil, 70% da população acredita que a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos. Apesar disso, ainda existe o discurso de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Como quebrar esse ciclo?
Mafoane – A primeira coisa que precisamos fazer é falar sobre as formas de violência e sobre o papel de cada um de nós. Hoje, temos um grande problema que é fazer a rede de proteção funcionar. Para isso acontecer, cada um precisa saber seu papel. Olhando o balanço da Central de Atendimento à Mulher, quase metade das denúncias feitas no Ligue 180 [número para denúncias criado pela Secretaria de Políticas para Mulheres do governo federal] são de pessoas que não a própria mulher em situação de violência. As pessoas começam a querer entender o seu papel, o que é muito importante. Mas ainda não legitimam a palavra da vítima e duvidam dessas mulheres.

Acabamos de fazer uma pesquisa de violência contra as mulheres no ambiente universitário e percebemos que 20% não contaram o que sofreram, por medo de retaliação, e 80% contaram. Só que, dessas 80% que contaram, 90% foram isoladas, retaliadas ou culpabilizadas. Precisamos ainda criar um ambiente onde todas essas raízes ideológicas, o racismo, o sexismo e o machismo, sejam discutidas, porque isso está na base da forma como se olha para o mundo. A conexão [entre esses problemas] é total. São os pontos de acupuntura necessários: falar sobre as diferentes formas de violência, preparar melhor os gestores que recebem as denúncias e entender, como sociedade, que a forma com que olhamos para as mulheres é norteada por uma visão machista. Sendo mulher ou sendo homem.

ÉPOCA – Na década 2003-2013 aumentou em 54% no Brasil o total de assassinatos de mulheres negras (de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013), segundo a ONU. Em contraposição, caiu 9,8% o total de assassinatos de mulheres brancas (de 1.747 para 1.576). O que isso significa?
Mafoane – Vivemos um dado muito alarmante. Se nesses dez anos houve aumento de 54% dos assassinatos de mulheres negras, nossa sociedade entende que a vida delas vale menos. A relação que as mulheres negras têm em todas as dimensões da vida tem um componente racial. As mulheres negras ganham menos, são menos atendidas pelos médicos, recebem 50% menos anestesia na hora do parto. Quais são os orientadores disso? De novo, são as raízes ideológicas. As políticas que construímos são norteadas por um olhar racista. As mulheres negras, olhando na pirâmide que a gente tem, estão na base. Sofrem muito mais discriminação. Por isso é tão fundamental falar sobre racismo, especialmente na dimensão econômica, pois a autonomia financeira está ligada ao empoderamento. Em uma sociedade na qual mulheres negras não são valorizadas, ganham menos na profissão, precisamos considerar isso na hora de construir as políticas.

ÉPOCA – O serviço das Delegacias da Mulher ainda é precário. Não atende, principalmente, às regiões mais pobres e às outras cidades brasileiras. O que fazer?
Mafoane – Pensando em atendimento, a gente tem dois grandes desafios. Primeiro: temos as primeiras delegacias que voltaram a ser 24 horas em São Paulo, mas temos um desafio no Brasil inteiro. O segundo é que, se você não tem uma delegacia em regiões onde mais se precisa fazer uma discussão, não adianta. A rede precisa funcionar. Para isso, é preciso ter os diferentes setores trabalhando juntos. A delegacia tem de estar lá, a assistência, o acompanhamento psicológico. As redes do centro de referência da mulher, as organizações sociais, os coletivos feministas. Eles têm trazido uma reflexão e uma nova energia fundamental para fazer uma pressão importante, para que as políticas públicas sejam aprimoradas. Cada um, no seu lugar, com sua função, precisa fazer a transformação. A violência contra a mulher é um problema de todos, os homens também precisam comprar essa briga, entendendo que homem precisa falar com homem. Não queremos que os homens sejam os defensores das mulheres, os príncipes salvando as princesas. Queremos que os caras falem com outros caras, porque essa que é a importância, isso que é empatia.