Mafoane
Odara: “Como garantir que haja mulheres negras nos cursos de engenharia?”
04/10/2016
- 12:20 -
Segundo a
coordenadora do Instituto Avon, a autonomia das vítimas também depende de que
as mulheres assumam posições-chave no mercado de trabalho
Há cerca de 15 anos, a psicóloga
e ativista Mafoane Odara se dedica a frentes de luta simultâneas,
contra a discriminação racial e de gênero. Faz isso, tradicionalmente, buscando
apoio e integração de esforços entre ONGs e empresas. Em dezembro de 2015, ela
assumiu a coordenadoria de projetos do Instituto Avon e, também, a campanha
Fale Sem Medo – Não à Violência Doméstica, em atividade desde 2008.
Numa segunda-feira do fim de
setembro, a psicóloga dividiu a palavra em debate com Ludy Green, americana
fundadora da ONG Second Chance Employment Services (Serviços de Emprego Segunda
Chance), Carmen Ferreira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP,
e Teresa Cristina Cabral, juíza e representante da Coordenadoria da Mulher em
Situação de Violência, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mafoane tratou de
como garantir segurança e independência econômica às vítimas de violência
doméstica. Ela conversou a respeito com ÉPOCA.
Mafoane Odara, ativista contra
discriminação de gênero e raça. “A violência contra a mulher é um problema de
todos. Os homens também precisam comprar essa briga” (Foto: reprodução)
ÉPOCA – Ao fazer a reinserção de mulheres no
mercado de trabalho, é normal que se fale em cursos de gastronomia, beleza,
corte e costura. Isso não faz as mulheres concorrerem entre si em poucos
nichos? Não reforça estereótipos?
Mafoane Odara –
Exatamente. Quais são as alternativas que estamos oferecendo? As mulheres em
situação de violência ganham 50% menos do que as outras mulheres, que já ganham
menos do que os homens. E as mulheres negras ganham menos do que as mulheres
brancas. É preocupante. Ninguém pergunta para a mulher o que ela quer. Muitos
desses cursos muitas vezes são oferecidos sem que seja aquilo que as mulheres
gostariam de fazer. Há uma dificuldade por conta da visão de que existem
lugares de mulheres e lugares de homens. Nos lugares onde as mulheres poderiam
ganhar mais e se destacar, elas não são consideradas. É preciso fazer uma
discussão transversal, parar de se acomodar com menos e fazer as transformações
que realmente precisam ser feitas. E não são as grandes transformações –
precisamos olhar para as pequenas.
Por exemplo, como garanto que
mulheres negras estejam nas carreiras de engenharia? Como garanto que mulheres
façam parte da política institucional? Essas são discussões importantes.
Quem faz as leis deste país? Quem constrói essas políticas? As mulheres não
estão lá. Quando não estão, esse olhar é masculino. Isso tem de ser levado em
consideração. Pensar sobre a autonomia econômica é repensar como esse sistema
funciona e como fazemos para colocá-las em lugares-chave, onde a transformação
tenha potencial de ganhar escala.
ÉPOCA – No Brasil, 70% da
população acredita que a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em
espaços públicos. Apesar disso, ainda existe o discurso de que “em briga de
marido e mulher, não se mete a colher”. Como quebrar esse ciclo?
Mafoane – A
primeira coisa que precisamos fazer é falar sobre as formas de violência e
sobre o papel de cada um de nós. Hoje, temos um grande problema que é fazer a
rede de proteção funcionar. Para isso acontecer, cada um precisa saber seu
papel. Olhando o balanço da Central de Atendimento à Mulher, quase metade das
denúncias feitas no Ligue 180 [número para denúncias criado pela
Secretaria de Políticas para Mulheres do governo federal] são de pessoas que
não a própria mulher em situação de violência. As pessoas começam a querer
entender o seu papel, o que é muito importante. Mas ainda não legitimam a
palavra da vítima e duvidam dessas mulheres.
Acabamos de fazer uma pesquisa de
violência contra as mulheres no ambiente universitário e percebemos que 20% não
contaram o que sofreram, por medo de retaliação, e 80% contaram. Só que,
dessas 80% que contaram, 90% foram isoladas, retaliadas ou culpabilizadas.
Precisamos ainda criar um ambiente onde todas essas raízes ideológicas, o
racismo, o sexismo e o machismo, sejam discutidas, porque isso está na base da
forma como se olha para o mundo. A conexão [entre esses problemas] é total. São
os pontos de acupuntura necessários: falar sobre as diferentes formas de
violência, preparar melhor os gestores que recebem as denúncias e entender,
como sociedade, que a forma com que olhamos para as mulheres é norteada por uma
visão machista. Sendo mulher ou sendo homem.
ÉPOCA – Na década 2003-2013
aumentou em 54% no Brasil o total de assassinatos de mulheres negras (de 1.864,
em 2003, para 2.875, em 2013), segundo a ONU. Em contraposição, caiu 9,8% o
total de assassinatos de mulheres brancas (de 1.747 para 1.576). O que isso
significa?
Mafoane – Vivemos
um dado muito alarmante. Se nesses dez anos houve aumento de 54% dos
assassinatos de mulheres negras, nossa sociedade entende que a vida delas vale
menos. A relação que as mulheres negras têm em todas as dimensões da vida tem
um componente racial. As mulheres negras ganham menos, são menos atendidas
pelos médicos, recebem 50% menos anestesia na hora do parto. Quais são os
orientadores disso? De novo, são as raízes ideológicas. As políticas que
construímos são norteadas por um olhar racista. As mulheres negras, olhando na
pirâmide que a gente tem, estão na base. Sofrem muito mais discriminação. Por
isso é tão fundamental falar sobre racismo, especialmente na dimensão
econômica, pois a autonomia financeira está ligada ao empoderamento. Em uma
sociedade na qual mulheres negras não são valorizadas, ganham menos na
profissão, precisamos considerar isso na hora de construir as políticas.
ÉPOCA – O serviço das Delegacias da Mulher ainda é
precário. Não atende, principalmente, às regiões mais pobres e às outras
cidades brasileiras. O que fazer?
Mafoane – Pensando
em atendimento, a gente tem dois grandes desafios. Primeiro: temos as primeiras
delegacias que voltaram a ser 24 horas em São Paulo, mas temos um desafio no
Brasil inteiro. O segundo é que, se você não tem uma delegacia em regiões onde
mais se precisa fazer uma discussão, não adianta. A rede precisa funcionar.
Para isso, é preciso ter os diferentes setores trabalhando juntos. A delegacia
tem de estar lá, a assistência, o acompanhamento psicológico. As redes do
centro de referência da mulher, as organizações sociais, os coletivos
feministas. Eles têm trazido uma reflexão e uma nova energia fundamental para
fazer uma pressão importante, para que as políticas públicas sejam aprimoradas.
Cada um, no seu lugar, com sua função, precisa fazer a transformação. A
violência contra a mulher é um problema de todos, os homens também precisam
comprar essa briga, entendendo que homem precisa falar com homem. Não queremos
que os homens sejam os defensores das mulheres, os príncipes salvando as
princesas. Queremos que os caras falem com outros caras, porque essa que é a
importância, isso que é empatia.
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